Os Ministros Gilberto Gil e Mangabeira Unger estiveram em Salvador para propor que pensemos a economia da Bahia no século XXI. O Ministro Gil já lembrou que a visão tradicional considera a cultura uma “cereja sobre o bolo”: uma coisa bonita, mas supérflua. Unger sublinhou que, na Bahia, é preciso aprender a passar do pré-industrial para o pós-industrial, sem etapas intermediárias.
Para fazer metáforas culinárias do papel da cultura no século XXI, melhor falar de panetone. A fruta não está sobre o bolo, numa função decorativa. Ela se mistura com a massa; ela é o bolo. De fato: o lugar central das indústrias criativas na economia do século XXI pode ser comprovado de vários pontos de vista.
É inquestionável o peso crescente das atividades culturais na formação do produto e na oferta de trabalho. Segundo a ONU, a economia criativa responde por 7% do PIB mundial e cresce rapidamente, a uma taxa que tende a 10% ao ano. A União Européia estima que 2,5% dos trabalhadores europeus encontrem ocupação na produção de cultura, porcentagem que aumenta extraordinariamente nas grandes cidades e em países como a Grã-Bretanha e a França.
Estende-se a transversalidade do valor cultural. Na atual economia, bens e serviços são valorados e valorizados cada vez mais pelo seu conteúdo intangível e simbólico – estético, étnico, religioso ou político. É interessante observar como isso diz respeito até mesmo a tradicionais commodities, agora impregnadas e envolvidas em cultura. Não é apenas a indústria de confecções que se transforma em indústria da moda, mas é também o chocolate, por exemplo, que se valoriza em função da marca, do “selo” verde ou social, ou ainda em razão da denominação de origem: “chocolate de Ilhéus”, vale dizer “Gabriela”. O valor de troca se descola do trabalho direto incorporado à mercadoria. O valor de uso não pode mais ser relacionado à utilidade em sentido estrito, pois o consumo é cada vez mais associado à necessidade de diferenciação social, a imperativos psicológicos superiores e, no limite, à singularização de desejos, muitas vezes supérfluos ou fúteis, mas sempre de forte conteúdo cultural.
A cultura é matéria-prima. No capitalismo atual, a criação de valor se desloca para o imaterial, isto é, para os serviços e bens digitalizados. A produção se faz com cérebros criativos e quantidade crescente de insumos culturais intangíveis: informações, idéias, símbolos, linguagens, relações ou públicos. O principal ativo é o relacionamento, o público fidelizado e proativo: consumidores que são cada vez mais também produtores – prossumidores. Nesse contexto, a divisão social do trabalho se aprofunda radicalmente, com a produção se externalizando em relação à empresa, enquanto esta tende a se transformar em organização virtual. O trabalho imaterial de prossumidores operando em redes, tornado hegemônico, produz linguagens, técnicas e arte, a partir de arte, técnicas e linguagens.
Repare nobre leitor, como parte crescente da imprensa que você lê é escrita e reescrita por leitores iguais a você. E, sobretudo, quando o suporte é online (comente!).
A produção cultural está na vanguarda da inovação tecnológica, inclusive organizacional. A atividade das indústrias criativas não apenas incorpora, rapidamente, as novas tecnologias de informação e telecomunicação, como também se destaca no uso das novas formas flexíveis e móveis de trabalho. Terceirização, cooperação internacionalizada em redes, trabalho autônomo, teletrabalho, transversalidade, plurifuncionalidade ou trabalho temporário por projeto, nada disso é novo, por exemplo, na produção do cinema.
A centralidade econômica da cultura se afirma ainda - e como decorrência de todos estes elementos – pelo fato de que a produção cultural é a arena central de duas das principais batalhas sociais deste início de século: a definição das condições de acesso do “precariado” aos novos meios de produção e distribuição, e a luta pela redefinição dos limites dos direitos de propriedade intelectual e das formas de fazer negócios com cultura.
Postos na linha de frente das mudanças nas condições de trabalho, artistas, técnicos do espetáculo ou pequenos produtores culturais pagam tributo à precariedade. De um lado, a alegria do trabalho autônomo criativo, potencialmente livre, distante dos relógios de ponto; de outro, remuneração incerta, instabilidade e ausência de direitos trabalhistas. Como liberar a potência criativa e superar as atuais condições de vida? Asseguradas condições mínimas de existência - o ponto de partida - o decisivo passa a ser o acesso aos novos meios de produção e distribuição, vale dizer, ao conhecimento (educação) e às redes (inclusão digital). De fato, o outro lado da customização ou personalização do consumo, uma característica da economia pós-industrial, são os vastos espaços que se abrem para uma produção cultural cada vez mais livre, colaborativa e diversificada – a personalização da oferta. Dito de outro modo: a procura por produtos culturais de nicho pressupõe uma oferta voltada para nichos culturais e gerada a partir de novos modelos de negócios.
Mas a condição primeira para a livre emergência dessa nova economia é a difusão da informação e do conhecimento, seus principais insumos, como bens públicos.
Os direitos de propriedade intelectual têm sido defendidos com base na tese, correta em princípio, de que remuneram os indivíduos e organizações inovadoras, garantindo, para o bem comum, a continuidade do progresso técnico e a diversidade cultural. Tudo bem. Mas é precisamente no terreno da cultura que a necessidade da atualização da legislação de direitos se manifesta, hoje, de forma mais clara. A resistência da indústria fonográfica às inovações nas formas de produção, distribuição e consumo da música; a tentativa de imposição, pelas grandes redes de TV, de equipamentos bloqueadores da gravação de emissões digitais; a opção dessas mesmas redes pela alta definição em detrimento da multiprogramação permitida pela TV digital, ou ainda o descompromisso míope das editoras com relação à digitalização dos livros e à pesquisa para a invenção de dispositivos mais eficientes para a leitura de e-books, são apenas alguns exemplos recentes.
A evolução das garantias ao trabalho criativo e a difusão de novos modelos de negócio são imposições da atual revolução tecnológica. Com o atraso de uma década, a indústria mundial da música começa a reconhecer o óbvio, passando a distribuir pela Internet, seu produto de forma gratuita ou a preços acessíveis, e reorientando, ao mesmo tempo, suas fontes de receita para os shows e a publicidade. Reproduzindo este ou criando outros modelos de produção, distribuição e marketing, a indústria cinematográfica, as editoras e muitos outros segmentos da economia criativa, terão que acompanhar, mais cedo ou mais tarde, as majors do disco.
Artistas, técnicos e produtores culturais terão melhores perspectivas nesse novo mercado? A greve dos trabalhadores temporários da indústria do espetáculo na França colocou na ordem do dia global a questão dos direitos sociais daqueles que produzem cultura. Os novos contratos “totais” da indústria de entretenimento, com entrega completa do artista e de sua imagem à sua produtora, lembram a servidão feudal, quando não o escravismo. A recente greve dos roteiristas de Hollywood, vitoriosa, parece indicar que muitos novos acordos ainda estão por ser feitos.
* Doutor em Economia pela Universidade de Paris X – Nanterre, professor licenciado da UFBA e superintendente na Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.
Paulo Henrique de Almeida